domingo, 21 de outubro de 2012

POESIA: UM BEIJO SÓ - VANDA LÚCIA DA COSTA SALLES







UM BEIJO SÓ


                         Vanda Lúcia da Costa Salles





Lindos e entristecidos estavam
como se a chaga não recebesse o bálsamo
como se o sorriso não alcançasse a luz
como se a vida não soubesse
que um beijo só bastaria
 para que o sonho
    tangesse o bandolim










sábado, 6 de outubro de 2012

CRÔNICA: A MULHER QUE ESTUDAVA A FUNÇÃO DE MORSE AO REDOR DA ORIGEM - VANDA LÚCIA DA COSTA SALLES





Foto: pássaros





A MULHER QUE ESTUDAVA A FUNÇÃO DE MORSE AO REDOR DA ORIGEM


                                                    Vanda Lúcia da Costa Salles




      Ela sabia que usava números.  Ao longo de sua vida, disseram a ela que a suavidade das coisas nem sempre estabeleceriam o valor dos acontecimentos e muito menos o prolongamento de seus avessos. Os avessos, para ela, sempre foram números impessoais na teoria das singularidades porque o que dominava mesmo era a variante local das interpessoalidades.
      Naquele dia estranhável, decidira que em sala de aula ousaria aplicar e classificar as patologias decorrentes da ausência de afetividade de uma inversa local ao redor de um determinado ponto do domínio de uma função diferenciável a uma emoção qualquer. Nunca saberia da possibilidade... Ah!  se não fosse a chuva torrente que caía.
      Ao descer do ônibus  na esquina da escola ( ela andava de ônibus porque seu dinheiro de professora não cabia no orçamento de um carro particular) percebeu duas enormes poças d'água enlameadoras e ameaçadoras. Dito e feito na composição de sua intuição, fora banhada cabeça aos pés pelas águas impuras da dita poça. quando um outro ônibus acelerado e acelerando propositalmente, o motorista sorrira insano pelo prazer de vê-la, ali, estupidamente gelada. Mal pensou, esqueceu completamente as aulas que daria, além  da construção neuroestética pelo prazer em que estudava a função de Morse ao redor da origem.
      No mesmo passo que vinha, voltou. Subiu na primeira condução que a levasse para o aconchego do lar. Sentia uma emoção nervosa e dolorida no desconforto da roupa molhada e uma indignação ou melhor, uma impotência diante da lembrança do sorriso perverso do trabalhador daquela viação 04.
      Alguém que a observara da janela, quebrando o silêncio dos passageiros, indagou-lhe curioso:
      - Então Senhora, seus alunos ficarão sem aulas hoje?
      - O Senhor viu o que aconteceu? Impossível, não?!
      Simultâneo ao diálogo, adentra apressada nesse outro ônibus uma Senhora loura, encharcada da chuva que caía, torrencialmente, parecendo anunciar um dilúvio. E pede ao motorista uma carona porque não tinha condições de pagar a passagem para chegar até a cidade do Alcântara, pois se faltasse não conseguiria o emprego combinado, dizia ela, que o dia anterior havia tido febre de 39 graus. O motorista achando que era caô, negou, é claro. Ela insistiu, o trabalhador negou, explicando que se lhe deixasse atravessar a roleta, ele é quem teria que pagar a passagem no valor de dois e sessenta centavos. Pensei, que cacete é a vida de um trabalhador com salário mínimo, chegar no dia 20 do mês e não ter dois e sessenta centavos para uma passagem, que país é esse? O meu, é claro. Diante do silêncio profundo produzido pela Senhora que ajoelhada, pedia, implorava, minha voz rouca e forte se fez ouvir: motorista deixe-a passar, eu contribuo com dois e quarenta centavos, é tudo o que tenho na bolsa. Quem pode inteirar quarenta centavos?
       Uma Senhora Negra puxou uma pequenina bolsa e ofertou  duas pratinhas de vinte centavos. Entre os 18 passageiros, somente ela sabia de empatia à causa da dignidade de uma trabalhadora em um dia nefasto, porque " isso também já aconteceu comigo". E a  nova passageira, agradecida e agradecendo com seus olhos azuis marejado de lágrimas, explicava a nós duas:
       - Pedi tanto a Deus enquanto caminhava e decidi pela carona nesse ônibus, que enviasse um anjo em meu auxílio. Veja, Deus atendeu as minhas preces. Em vez de um, enviou-me dois anjos, agora sei que ficarei no emprego que vou ver para mim.
       Dentro daquela lotação, vinte e uma pessoas aprenderiam, cada uma com a sua percepção, a importância invertível, ao descrever o dia, via mudança suave de coordenadas.