sábado, 3 de julho de 2010

CORPO SÃO EM MENTE SÃ? - SOBRE A OBRA DE QORPO-SANTO - PARTE I -POR VANDA LÚCIA DA COSTA SALLES*



Foto: Qorpo-Santo




" Há momento em que um só homem concentra em si a totalidade das emoções que constituem a vida da humanidade: é quando uma grande idéia revoluciona seu ser ( FARIA BRITO, APUD gadelha, 1975, P.151)".


Toda obra de arte é um sonho d'alma, energia vital querendo ser comunicada. Um delírio intuitivo de aumento de ser e do ser. Linguagem cósmica de vida sustentável, profunda. Perigosa porque divindade experimentada no esgarçamento da sensibilidade da vivência coletiva transfiguradora da fantasia amadurecida. Pronta, na intenção do artista ao focar um desejo, um pensar, um saber. Este, produtor de sentido, aquel orientador dos sentios pelo direcionar da atenção através do prazer despertado pela curiosidade de fundar o possível.
Quando a alma sonha, o espírito delira. Delira uma linguagem toda própria, estranha à normalidade - é o inusitado que se experimenta-, revolucionadora em sua essência. Devido a isso, a obra de arte o apresentar " o novo" afirma uma possibilidade entre tantas: um desejo de plenitude, de forma harmoniosa, humanizada pela vontade do artista de atingir sua realização de ser social, histórico e cultural.
ao se tornar desejante confirma o seu projeto de vida: um sonho que aqui se traduz na tentativa de reformular a gramática de língua portuguesa, torná-la efetivamente voltada para a realidade do falar nacional.Isto no Brasil do século XIX, monárquico e escravocrata.
José Joaquim de Campos Leão - Qorpo-Santo - preocupado e comprometido com uma prática pedagógica voltada para a descoberta do ser humano como agente do seu próprio destino, assim esclarece:

" desde 1862, que levdo de uma força irresistível, e do mais veemente desejo de ser de qualquer modo louvável, útil a meus semelhantes, e especialmente a meus alunos, ensaei a Ortografia de que pouco a pouco me vou servindo, e transmitindo-a aos sábios cuja crítica sujeito. ( QORPO-SANTO, apud CÉSAR,1969, p.28)"

Ansiou simplificar a ortografia brasileira e contribuir para a aceleração da leitura e da escrita da população, principalmente a da zona rural - espaço em que se concentrava a maioria dos brasileiros. Pode-se assegurar que o seu comprometimento era com a questão da alfabetização nacional.
Em sua idiossincrasia, anseia colocar o presente numa perspectiva critica, dinâmica, perinente a vida. Ao falar de seu projeto, as críticas que recebe denotam que " é muito difícil pretender incluir os pobres quando não se sabe, ou não se quer saber, a maneira pela qual foram excluídos." ( DEMO, 1998, P.33)". Há uma descoberta interior: a sua epifania acontece e lhe abre um sentido de busca. Daí, decobre o seu nonsese. Marca uma diferença:

"Cercado de riso e de sarcasmo, nasce um mito que se chamou na ortografia lá dele- Jozé Joaquim Campos Leão Qorpo-Santo. O acréscimo feito ao nome de família vinha depois destes, ora entre parênteses, ora orgulhosamente só: Qorpo-Santo.( cesar,op. cit. p.47)".

Diante da imposição, do estabelecido, da norma inútil, subverter a ordem seria inventar a sua filogênese. QORPO-SANTO= O TODO ( Símbolo de uma nova concepção). Sua estética desmitifica o pai. Autoridade suprema e opressora. Útil a seus semelhantes na elaboração de outros caminhos. Num jeito todo próprio de ser. Pelo direito de pensar o prazer, a criatividade, o país, a língua e o corpo, fundamenta a sua obra. Faz arte e parte, diz que subiu aos céus. Incomoda tanto que, desvalorizado pelos seus pares e ridicularizado, com frequência, pela esposa diante dos filhos 9 tentativa de impedi-lo de realizar o seu projeto escritural) busca a força transmutadora da imaginação criativa. Contudo, sabe-se que;

" Sua mulher e filhos não sabiam como fazer para impedir ou atenuar auela grafomania caudalosa e incontrolável. Os médicos, gravemente, após demorado exame, diagnosticaram: Jozé Joauim sofria de mal sem remédio: a monomania. O juiz de órfãos, diante da prova pericial, interditou-o, nomeando um curador para gerir os seus bens. ( op.cit. p.46)".

Internaram-no num hospital psiquiátrico. Proibido de pensar, escrever e falar sobre a Gramática Nacional- seu grande sonho-, com enorme criatividade desvia o seu projeto para um ouro gênero escritural 9 como uma forma de resistência à liberdade de expressão: faz Teatro, busca o coletivo no rizível das comédias-farsas. Faz-se um simulador no experimentalismo do absurdo.

" Assim, o sujeito criador jamais se situa como objeto de qualquer processo histórico, social ou cultural e é prórpio dele abalar-se contra toda e qualquer medida de controle ou padronização de sua forma de ser, pensar, sentir e de agir. ele é o seu próprio destino. ( RODRIGUES, 1976, P.220)".

A criatividade elabora sua estrategia de fuga. Entre comédias e farsas, constrói 18 peças teatrais e funda o Teatro do Absurdo no Brasil, em 1866. O qual oficialmente, só ocorrerá com Jarry, na frança, em 1905.
Proibem-no de dar aulas,interditam-no em seu direito de cidadão, consideram-no acometido de loucura parcial. Dizia-se, na época, "delírio da inteligência, com predomínio de uma ideai fixa, de um sentimento ou de uma paixão".( ALBURQUERQUE, op. cit. p.23)".

O limite, se é que existe, está na dificuldade que a sociedade tem de apreender, compreender e refletir as ideias do seu tempo presente; quase sempre se situam nas do século anterior. Os artistas, pela aguçada intuição, sintonizam o lugar de direito do inconsciente enquanto forma de saber e transmutação de energia.
Captando as energias elaboradas por opinião divergente - Qorpo-Santo foi vítima das ideias totalitárias e partidos da época em que viveu. Sofreu as agruras da opressão em sua dignidade humana. Contudo, o seu Teatro Inovador- arte da inclusão - é o seu encontro, o seu projeto final. Num inteligente diálogo com " O Outro" ( a Língua e a Cultura) ampliou a consciência e a manifestação do ser. Reelaborou sua práxis. Não ficou apático, e na "ociosidade" rejeitou a sensação de perda do sentido de sua vida - imposta por uma minoria-, produziu obras e ditou-se. Ousadamente afirmou sua saúde mental pela consciência objetiva de si, do outro e dos outros. Sabia-se3 corpo e alma, e que " nosso corpo é comparável a obra de arte" ( MERLEAU-PONTY, 1994, P.210), pois comunica a qualque rum a verdade do ser, sua arte e revelação, de sua força na produção de sentidos.
Sutil, irônico na constatação da agudização social, resdistribuiu papeis, fazendo do riso, da alegria, o movimento transgressor na acentuação dos ridículos das relações humanas sob o peso das etiquetas e da cópia cultural transplantada da França, no século XIX. Portanto, sua obra tem ponto fulcral na reflexão da sociedade à época ao colocar em evidência a problemática da Terceira Idade.
Universalizou o particular ao questionar o discernimento ético, ao reivindicar a passagem das relações superficiais para relações interpessoais com sentimento. Ao questionar o profissional da imprensa, contribui com o Decálogo Ético. Mostra-se um visionário ao buscar o debate sobre a sexualidade e os saberes. Faz-se um pós-moderno pelo tratamento intertextual e intratextual dado, à época, em sua obra.


* In DIVERSIDADE E LOUCURAS EM OBRAS DE ARTE: Um Estudo em Arteterapia, de Vanda Lúcia da Costa Salles, Editora Ágora da Ilha, julho de 2002, pp.23a 27)

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